terça-feira, 26 de abril de 2011

Idéias levantadas a partir dos textos: Enigma da Infância (Larrosa), A Crise da Autoridade (Arendt), A Autonomia Moral na Criança (Piaget)

Como pedagogos, colocamos a criança no posto de objeto de nosso estudo e nos dirigimos confiantemente a conhecer a “ciência da infância”. Preocupados em fazer tal ciência, não nos damos conta do que é ter ciência. Acaso temos ciência do mundo da criança, de seu ponto de vista, de suas vontades? Nossa memória de quando fomos crianças pouco nos ajuda nessa hora. Que conhecimento pode conter em uma memória tão vaga e entrecortada? E que comparação pode haver entre a memória de um determinado adulto e o acontecimento de uma determinada criança hoje?

Apesar desse grande abismo (entre a criança que fomos e a criança que encontramos), trabalhamos “para reduzir o que ainda há de desconhecido nas crianças e para submeter o que nelas ainda há de selvagem” (LARROSA). No fundo, nossa vontade de saber mais sobre a criança (principalmente sobre a psicologia da criança) quer saciar a fome de dominação e controle. Conhecer para dominar: velha estratégia de guerra. Carregados dessa mesma sensação de guerra é que muitos professores colocam-se diante do desconhecido; dos desconhecidos alunos.

É nessa hora que os adultos lançam mão de suas armas: teorias, pensamentos, métodos... Lemos tantos adultos relatando suas impressões sobre as crianças, mas não valorizamos a leitura que se pode fazer nos olhos dos novos seres: as crianças, obras inéditas sempre.

Nós é que queremos trazer tudo a eles, dada à fragilidade da criança, à sua ignorância quanto ao nosso mundo. Mundo que já está aqui, equilibrado, assimilado, assentado. São tantas as coisas que nós, adultos, já concebemos! Até a infância, soberbamente, pretendemos ter concluído.

Crianças tanto vêm e vão que as deixamos passar por nós como algo velho, sem mistérios nem segredos. E ainda, pretendemos que elas continuem para nós o nosso “certo” e velho modo de ver o mundo e construir o futuro. Educamos para isso, por causa disso, e por meio disso, pois "a educação tem a ver com a natalidade, com o fato de que constantemente nascem seres humanos no mundo" (ARENDT) e, portanto, um esforço deve ser feito para que se mantenha uma ordem estável e estabilizada, sem incertezas, sem novidades que atrapalham. Ordem para progredir; disciplina para dominar. Logo, educar se torna a busca por um resultado que é previsto antes mesmo de começar.

Então, o planejamento escolar é feito do velho e certo modo esperado, previsível, antes do início das aulas. E um certo dia: o encontro. E do encontro vem os desencontros da vontade do adulto com as vontades da criança. Aparecem os fracassos em sala, a indisciplina, a falta de limites, o desrespeito à autoridade, o desrespeito aos colegas. Nós, quando professores e não mais como estudiosos da infância, nos veremos diante de seres absolutamente indomáveis. E realmente são indomáveis. Quem sabe aí – melhor que seja antes – nos damos conta de que o problema não está no ser de natureza indomável, e sim em ter pretendido domá-lo.

Que indisciplina é essa que tanto queremos combater? Parte da indisciplina vem, de fato, dos resquícios egocêntricos da criança. Mas outra parte das reclamações de indisciplina vem dos resquícios egocêntricos do adulto: que ambiciona controlar o novo, aquietar o espontâneo, proibir o milagre para que o velho mundo - e estritamente o velho mundo - seja aprendido e apreendido. Temos que colocar limites nas crianças? Sim. Mas sem nunca limitá-las a viver de velharias. Na verdade limitá-las de fato é impossível: não dá para conter a força do novo, assim como não se pode esperar respeito à autoridade se esta por sua vez não respeita a atuação da novidade. O professor tem a sensação de perder o controle, mas na verdade o controle do espontâneo nunca foi de seu domínio, enquanto adulto.

“Aí está a vertigem: na maneira como a alteridade da infância nos leva a uma região na qual não regem as medidas de nosso saber e de nosso poder” (LARROSA). E continua: “A criança não é nunca a presa de nosso poder (é o outro que não pode ser submetido), mas, ao mesmo tempo, requer nossa iniciativa; não está nunca no lugar que lhe damos (é o outro que não pode ser abarcado), mas devemos abrir um lugar que a receba”. Mediar sempre, não abandonar nunca. É com essa mentalidade que devemos encontrar-nos para então nos encontrarmos com a criança (“Encontrarmos com”, e não “ir de encontro à”, como domadores de leões ou soldados em guerra).

Nesse encontro, o respeito é mútuo. A autoridade do adulto se firma em sua experiência de mundo velho, e não em sua exigência de conservação do mesmo. No entanto, sem omitir o velho nem esconder quem somos, temos o dever (que não deixa de ser um direito) de apresentar às crianças: “Isto é o mundo” (ARENDT). Assim também, as crianças tem o direito de nos mostrar sua novidade; e por que não, o dever de nos contar o que trouxeram para o futuro, já que deveríamos estar dispostos a nos transformar em direção ao desconhecido.

Talvez seja mais fácil aceitar essa mutualidade de direitos e deveres quando reconhecemos que da infância viva, que nasceu há pouco, não sabemos nada. Das crianças que respiram hoje, é impossível ter uma imagem verdadeira, pois a infância é o verdadeiro, o autêntico. O adulto pode conhecer e descobrir o outro, mas não pode estar no lugar do verdadeiro, do original, do imprevisto.

Marina Seneda

4 comentários:

  1. Nossa, Ma, parabéns!

    Texto MA-RA-VI-LHO-SO.

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  2. Marina!! Fiquei encantada com o texto.. Parabéns!
    Que essa inspiração e esse amor pela educação possam sempre acompanhar nosso trabalho!

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  3. Muito obrigada pelos comentários, muito obrigada Maria Teresa, por nos dar a oportunidade de ler textos tão inspiradores como o do Larrosa!

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  4. Esse texto realmente está completo!!!
    Muito bom lê-lo, foi além das espectativas.
    Parabéns mesmo!

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